Welket Bungué

Welket Bungué

Entrevista por Isabél Zuaa

Fotografia por Frederico Martins

Direção criativa e styling Larissa Marinho

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Há conversas que parece que estiveram uma vida toda à espera de acontecer. Há palavras que precisam de ser ditas, há dedos a pôr nas feridas, há histórias que têm a obrigação de ficar registadas. Colegas, amigos, parceiros, Welket e Isabél falam do que é parte da sua obra, quer através do seu trabalho, quer na sua vida, até porque não há onde comece um e termine o outro. E nós? Nós escutamos.

Isabél: Em primeiro lugar quero aqui louvar e parabenizar o teu caminho que tem sido muito inspirador. Tenho tido a possibilidade de acompanhar e de fazer parte nos últimos 10 anos em vários países, em várias cidades, deste globo. Muitos parabéns, é uma honra ser tua contemporânea, Welket Bungué. Começo exatamente por aí: pelo significado do teu nome. O que significa o teu nome e o que tem significado esse nome para ti?


Welket: Eu sou também muito grato por ser teu contemporâneo – já te disse isso antes, mas não posso deixar de dizer. É tão bom sentir desde já aqui esta energia. Welket N’Cabna Tambá Bungué, esse é o meu nome. Welket significa Dar a volta à situação. Isso tem a ver com a tradição comum ao povo balanta, em que a atribuição dos nomes está muito conectada com o momento do ponto de vista da transição e da narrativa pessoal que a pessoa vive. Então, o meu nome, à semelhança de todos os nomes dos meus irmãos, é uma questão ou uma afirmação – neste caso, é uma afirmação. O meu pai já tinha tido quatro filhos antes de mim e estava num relacionamento com a última mulher com quem ele privou e viveu a sua vida até à sua partida, e era com essa mulher que ele estava prestes a ter um último filho. Mas para surpresa dele veio a saber eu estava também prestes a nascer, da minha mãe, com quem ele teve também um caso amoroso. Por conta dessa surpresa, desse ato inesperado mas aceite por ele, ele me dá esse nome, que é essa surpresa, e essa possibilidade de nascimento de ter mais um filho, que deveria ser uma reviravolta, mas é um recomeço.


I: És uma reviravolta.


W: A minha trajetória pessoal é muito pautada por esse destino, por essa força. Imageticamente associo muito esse nome ao elemento Ar, que é o meu signo também, Aquariano. Que é um elemento que acaba por se misturar com os outros e traz-nos sempre a possibilidade dessa dinâmica, de uma coisa se tornar outra, de um tipo de acontecimento poder absorver outros e, nesse contexto, se transformar numa outra coisa. Ao mesmo tempo que tem-me permitido navegar. Quando nós eramos muito novos perguntávamos muitas coisas, e perguntávamos ao nosso pai o significado dos nossos nomes. Quando ele nos explicou não só olhámos com admiração, pela criatividade, mas também o facto de termos nomes muito diferentes dos nossos colegas na escola acabava por fazer com que eles nos tratassem pelos diminutivos – Wel e Wil. Ou então, como “é típico” no ambiente das crianças, arranjavam sempre outros nomes... Neste caso, eu era o Café e o meu irmão era o Café Com Leite.


I: Estás a falar de identidade. O teu nome, a forma como o teu pai de uma forma muito sofisticada nomeou a sua trajetória através do nascimento dos seus filhos, da sua linhagem. E não querendo interromper, mas trazendo essa questão de identidade – que é esse conjunto de caraterísticas que nos vão definindo e que têm a sua essência e uma personalidade de acordo com os acontecimentos na nossa biografia – quero perguntar-te em que momento sentes intuitivamente que está a tua identidade profissional?


W: Estou num momento de reconexão comigo mesmo e isso tem-se traduzido num recomeço. Porque estou com 35 anos, já há 20 anos que faço trabalho de ator. Os primeiros cinco anos foram através do teatro amador, depois académico, e depois veio a formação, e a partir de 2008 começo a trabalhar profissionalmente. Eu diria que até ao ano passado, até à pandemia começar, fui muito intuitivamente procurando a possibilidade de trabalhar, de participar ativa e artisticamente nas produções que foram surgindo inicialmente em Portugal, depois no Brasil, e depois foi-se expandindo ao nível internacional. E aí era muito um misto de poder participar em trabalhos que me pudessem dar reconhecimento e consequentemente me pudessem dar oportunidades, onde a minha participação enquanto ator mostrasse as minhas habilidades artísticas, não só no contexto da minha vivência enquanto português, africano, negro, mas também enquanto cidadão em trânsito que acabou por acumular muito da cultura brasileira. A partir do momento ali da pandemia, depois de ter feito o filme Crimes of The Future do David Cronenberg, houve ali um momento em que percebi que naturalmente hei-de continuar a fazer isto, só que a minha relação com o trabalho de ator passou a ser uma relação muito mais intuitiva, conectada com aquilo que são os meus propósitos, com a minha própria verdade. E isso faz com que eu comece a olhar mais para o continente africano enquanto recurso e inspiração, enquanto espaço a expandir do ponto de vista da contribuição. Neste momento, como tenho cada vez mais possibilidade de transitar para território africano e estar em contacto com as pessoas, tento olhar mais. Eu sinto que o meu trabalho como ator e a minha maneira de estar enquanto artista consciente está cada vez mais influenciado pelas minhas vivências com o território africano e com as relações que eu tenho vindo a fazer na África. Por exemplo, eu acho que ter ido para a Nigéria, foi bastante importante para mim, porque eu pude estar em contacto com uma outra indústria, que não é apenas africana, mas é pan-africanista. Porque ali não está só conhecimento, mas uma rede de contactos que muito dificilmente poderia ser consolidada se não fosse na Nigéria, neste caso, que é, do ponto de vista global, o território onde mais se produz audiovisual e e se consome entretenimento no audiovisual. Para termos uma ideia, eu fui para a Nigéria como talento de um filme alemão, o Berlin Alexanderplatz. E estar lá, poder testemunhar, ver nos olhos deles – deles, isto é, dos europeus que foram ao festival – a dizer que o futuro do cinema passava muito pelo continente africano, não só pelo número de consumidores que existem naquele território, mas pelo número de talentos emergentes que têm surgido, é bastante empoderador. Pude conhecer por exemplo a Abby Ajayi, que é criadora do How to Get Away With a Murder, que é uma grande cabeça. Poder ter contacto com esse tipo de pessoas fora do contexto hegemónico como é o território europeu e ao chegar lá poder partilhar conversas em que se vê mulheres negras empoderadas detentoras de uma network com uma influência muito grande num território onde se consome um grande volume de produção audiovisual, em que circula muito dinheiro – e estamos a falar de dólares –, isso é tudo uma série de constatações que tem tido cada vez mais peso na minha perceção daquilo que é o cinema global e o que é o valor dos talentos e das produções que têm como foco a africanidade. E porque é que eu falo disto? Porque estou num momento em que estou a dar mais foco ao meu trabalho enquanto ator, porque eu acho que é uma forma direta de valorizar e cunhar a minha imagem comercial no mercado. Ao mesmo tempo, estou num momento em que escrevi um livro – Corpo Periférico – e esse livro foi um momento muito importante para mim, porque consegui materializar o meu pensamento através do recurso à escrita, onde foi possível ver a catalogação dos meus filmes, estamos a falar de cerca de 25 filmes, feitos desde 2013. Filmes esses que acabam por ser um sumo da criação do método e de uma atitude perante o mundo ao longo destes anos, uma construção que foi feita com desejo de manifestar um olhar muito próprio perante a indústria e ao mesmo tempo o retorno desse método – ele poucas vezes foi encontrado, e isso foi uma coisa que precisei de forjar. Estar em lugares como o Brasil e ver que as temáticas estão concentradas, e que do ponto de vista intelectual e da produção de conhecimento, estavam muito mais desenvolvidas e que havia uma agregação...


I: Até o nosso próprio pensamento. Ir para o Brasil fez com que os nossos meandros de identidade ficassem mais latentes e com necessidade dessa partilha. Porque até então era Portugal o espectro e depois o Brasil dá-te um encontro frontal contigo de dentro para fora. Não era sobre corresponder a expectativas, daquilo que esperavam que nós fossemos, era apenas ser e mergulhar nessa profundidade de existir e de partilhar essa existência, de partilhar esse pensamento.

Falaste agora da Nigéria e também falaste de um assunto sobre Portugal. Esta revista é uma revista portuguesa e os seus leitores portugueses. Aos que não tiveram possibilidade de conhecer o teu trabalho, diz-me de uma forma cronológica e tópica, projetos e trabalhos teus que sejam essenciais para conhecerem o teu trabalho, quem não conhece, nomear alguns projetos teus, não só como ator, mas também como realizador, como jurado. As pessoas têm vindo falar comigo sobre isso: “Tu foste jurada num festival no Brasil, no Rio de Janeiro, e o Welket foi jurado num festival... São festivais internacionais de cinema. E nós estamos a ter esse reconhecimento no outro lado do oceano. Não estamos a ter esse reconhecimento em Portugal e isso é um facto, é factual. Não estamos aqui de mimimi, estamos a partilhar factos. E nós também já nem estamos a pedir que sejamos reconhecidos em Portugal, isso já não é uma necessidade...


W: Completamente!


I: Mas pensando sobre isso, como nós somos atravessados pela presença, pelo momento presente e ter a consciência disso é muito impactante. Estamos sempre a começar, o caminho já é longo, mas estamos sempre a começar. Tu disseste: “estou num momento da minha vida de reconhecimento, estou a começar”, mas falavas de uma trajetória que não começou agora. Nós temos uma colega artista que trabalhou connosco no Brasil no filme A Viagem de Pedro, que é a Rita Wainer, e num dos trabalhos dela diz: “decretar recomeços todos os dias”. E acho que enquanto artistas, nós temos tido essa possibilidade e não temos de ter esse constrangimento de decretar recomeços todos os dias.


W: Certo. Essa é uma questão com um nível de sensibilidade e atenção que te é caraterística. Eu começo a fazer teatro em 2006. Antes de fazer A Gaivota, de Tchekhov, a primeira personagem que eu faço é a Rainha Gertrudes, mãe de Hamlet, e foi um ótimo batismo em palco. Isso abriu-me portas para tudo o que eu tenho vindo a fazer, alcançar, conquistar e receber até aqui. A Gaivota de Tchekhov, em 2009, encenado pelo David Silva, que foi o meu primeiro grande professor de Teatro. Esse projeto foi importante porque, pela primeira vez, em palco e de uma forma consciente, trabalhei uma personagem intelectualmente mais desafiante, médico e escritor. Pelas circunstâncias em que estávamos – a fazer teatro académico –, acabámos por ser nós a preparar a peça e, durante dois anos, trabalhei bastante a personagem e ao mesmo tempo estava já na faculdade. Para quem não sabe, a Escola Superior de Teatro e Cinema é uma faculdade que tem um processo de candidatura bastante exigente que acaba por sugerir uma competitividade muito alta entre os concorrentes, mas ao mesmo tempo acaba por ser um lugar que automaticamente valida a qualidade daqueles que são integrados. No entanto, depois o tecido cultural e étnico que compõe a escola em si é muito pautado por uma leitura conservadora e isso reflete-se nas bibliografias.

Sendo eu um homem negro de um estrato social muito distante do daquela personagem, consigo projetar-me claramente a fazer uma personagem que tem estas caraterísticas e ao mesmo tempo eu vejo que aquela maneira de atuar, a construção que eu acabei de fazer da personagem acaba por ficar incorporada na minha maneira de agir. Isto é muito doido. Porque é como se eu tivesse, durante dois anos, dialogado com uma personagem que tem a caraterística de se colocar de uma forma professoral, o que denota uma certa acumulação de conhecimentos bibliográficos, mas também de escrita e autorreflexão. E isso influenciou bastante a minha maneira de comunicar com as pessoas ao meu redor. É nesse projeto que me lembro de uma frase que ficou enraizada na minha cabeça que é: a vida não deveria ser como ela é, nem como deveria ser, é a vida que vemos em sonhos que temos de reproduzir. Eu entrei mesmo na loucura de começar a manifestar com mais audácia os meus desejos enquanto ator e enquanto talento internacional.

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I: Isso é uma caraterística muito comum na nossa vida de artistas. Quando há um encontro com um objeto artístico ou uma personagem. Nós damos vida, alma, voz a essa personagem e essa personagem também nos leva para outros lugares. Ela transporta-nos, alavanca-nos também. É um encontro entre o ator e a personagem e nem sempre é um encontro muito óbvio. Mas esse projeto foi importante para ti como alavanca, mas eu volto a questionar: quais são os projetos necessários para que um leitor ou uma leitora portuguesa tenha acesso a ti?


W: Eu acho que o filme Eu Não Sou Pilatus, que é uma curta-metragem, um documentário experimental, que competiu no Doclisboa de 2019, é um desses trabalhos. É um trabalho que retrata dicotomicamente o tipo de comportamento que a polícia tem numa área da cidade de Lisboa, no Bairro da Jamaica neste caso.

O filme Intervenção Jah é um dos projetos de que eu mais gosto na minha filmografia. É um filme de 15 minutos que aborda o tópico dos corpos negros que são violentados e que são sistematicamente apagados pelas forças policiais no Brasil. É uma performance que fiz numa comunidade que fica no Rio de Janeiro, que é o Morro dos Prazeres. Uma performance em que convido uma fotógrafa, a Kristin Bethge, o Walter Reis e o Daniel Santos e a Jessica Senra.

O filme Mudança, que fiz com a Joacine [Katar Moreira], que traz um traço dessa mudança do ponto de vista de um interesse narrativo para mim, em que trabalho como pensador. Se no início da minha trajetória como realizador começo a trabalhar a temática social – como o caso do Bastien, que é o meu primeiro filme, e estreou em 2016 –, quando chego a 2019 começo a ter mais interesse em fazer filmes que dialoguem com esta lógica, conceito e estética mais holística. Eu vejo o meu corpo, os vários corpos negros como corpos, como fragmentos da natureza, que não só transportam as suas histórias, mas também ancestralidade. E por conta disso falo de outro filme, que é o Urubu É o Amigo Desconhecido, de 2021. Aí eu faço uma reflexão sobre a cor negra e todo o potencial que está associado a ela, mas que é degenerado por conta de pretensões hegemónicas injustamente. O urubu é um animal que tem a cor negra, é um guardião dos céus e é um animal que permite a transição do corpo matéria desta dimensão para uma outra. Esse filme foi pouco consumido, e eu gostaria que as pessoas o fossem ver.

Tchon di Balanta foi um espetáculo a partir do qual cresci muito também, porque produzi-o no Brasil em 2017 e nele conto a história dos nossos nomes. A atribuição de todos os nossos nomes, desde o irmão mais velho, todos eles iniciados por W. De uma forma muito fluida trago para o palco afirmações e questionamentos sobre esse homem pós-moderno que através dessa junção entre o Brasil, África e a Europa tenta trazer para o palco aquilo que são, diria eu, os pontos que vincam a minha personalidade, a minha maneira de estar.

Há um projeto por que tenho muito carinho, que é o Treino Periférico, que por acaso fiz contigo e com o Bruno Huca. E também participou a Lucila Clemente que é uma escritora brasileira que está aqui em Lisboa. Acho esse projeto particularmente interessante porque nós temos dois artistas performers que são interpretados pelo Bruno e pela Zuaa. E temos dois artistas que vivem na periferia de Lisboa e que vão treinando as suas habilidades tanto físicas como intelectuais, através de um endurance físico, tentando trabalhar toda a sua corporalidade e movimentos, com as pedras e as estruturas fragmentárias que existem na composição arquitetónica dessas zonas privilegiadas, ao mesmo tempo que, do ponto de vista do discurso, fazem reflexões muito interessantes sobre o sentimento de pertença nas comunidades e nas minorias étnicas. Esse filme é um dos que, pelo título, já começa a apontar para aquilo que eu acabo por fazer, que é a escrita do livro [Corpo Periférico]. Esse livro discursa sobre a metodologia que é a autorrepresentação, que não é mais do que nos politizarmos a nós mesmos e ao entendimento que nós temos sobre a nossa trajetória enquanto indivíduos em trânsito, o nosso entendimento do mundo, o nosso entendimento de pertença a um determinado lugar – o pertencer aos nossos corpos.

O filme Berlin Alexanderplatz, de 2020, com uma produção alemã muito grande e que é um filme que consegue, pela primeira vez, colocar-me como protagonista. Um projeto de quase 8 milhões de euros. Na nossa realidade, é importante entender que os atores negros são atores que, à semelhança daquilo que acontece nos EUA, são atores que realmente conseguem, de alguma maneira, levar avante projetos que tenham orçamentos grandes e, eu preciso de dizer isto, porque eu tenho a sensação de que o facto de eu, até aqui, não ter protagonizado – a conversa agora está aqui a ganhar outro tom –, o facto de eu não ter protagonizado filmes em Portugal não tem só a ver com o tradicionalismo daqueles que estão na linha da frente e que produzem os filmes aqui no país, mas também tem a ver com uma certa incapacidade de percecionar os talentos negros como talentos que de facto conseguem trazer liquidez aos filmes. E conseguir trazer liquidez aos filmes significa que os atores negros conseguem vender não só ao nível nacional, mas também ao nível internacional. E quando não se consegue ver isto, não se consegue ver personagens ou dar a liderança a esses atores, a esses perfis de atores, porque se acha que é muito dinheiro investido nesses atores.


I: A falta de diversidade que existe nos filmes e produções portuguesas não condiz com a realidade portuguesa e com as relações que Portugal estabeleceu, primeiramente com vários países não só no continente africano, mas também no continente asiático e também na América Latina, no Brasil. A realidade do painel de artistas e atores não condiz. Para além dessa questão financeira, tem a ver com o espectro e com o imaginário. E não condiz também com a sociedade em que nós vivemos aqui em Portugal, basta irmos para a Baixa-Chiado, para o Martim Moniz, para as nossas periferias, e vemos que a realidade portuguesa não está a ser manifestada artisticamente no espectro dos filmes. E eu acho que também é isso que faz com que os filmes não tenham projeção internacional. Nós vemos esse empenho em França... Estiveste em Cannes; nós temos estado nos maiores festivais também da Europa. Nós temos esse espaço em Berlim, na Alemanha, em França, em Inglaterra, em Itália, Espanha. Fiz agora uma série em Espanha, acabei na terça-feira. E não é sobre mim, é sobre darmos o exemplo de como aqui não existe uma abertura sobre a própria realidade. Não existe essa reflexão sóbria sobre as relações que Portugal estabeleceu há anos.


W: Eu sublinho mesmo essa frase, esse comentário que fazes. Porque, mais uma vez, neste momento não me encontro, nós não nos encontramos, num momento de pedir reconhecimento, porque ele já está aí. Só que, do ponto de vista de pertença, enquanto agente cultural, é indigesto poder-se brilhar e poder-se dar a cara por projetos produzidos internacionalmente e saber-se que isso poderia ser feito cá, mesmo que não fosse feito por mim ou por nós [eu ou tu], que fosse feito por outros, que pudessem compor produções que, ao contrário daquilo que nós sentimos e que achamos, que pudessem refletir mais este encontro e interceção que Portugal tem com os territórios fora da Europa, nomeadamente em África, na Ásia, na América do Sul.

Só para finalizar, eu pertenço a várias academias: à Academia Europeia de Cinema, à Academia Alemã de Cinema e à Academia Portuguesa. Eu acho isto importante porque põe em perspetiva o perfil de artista de que estamos aqui a falar, que é uma pessoa que acaba por ver centenas de filmes anualmente e que participa em fóruns que acabam por observar volumes que impactam a nossa perceção da Europa contemporânea. E isto é um dado importante sobretudo para que se possam rever no meu perfil enquanto artista. E isso é bonito porque no ano passado passei no festival de Ghent, que é o maior festival da Bélgica, um festival com 50 anos. E mais uma vez nós podemos relativizar a importância de participar num festival internacional, mas é o tipo de ambiente que nos traz bastante sumo e consciência para o nosso trabalho. Uma pessoa que consiga navegar em lugares como esse, que é o caso, é difícil nós não olharmos o perfil de consumo e o perfil de produção cinematográfica de Portugal sem tentarmos compará-lo ao perfil de produção desses outros territórios onde nós podemos participar como parte do júri. Porque é impossível uma pessoa despertar e ter acesso a um determinado conhecimento e não querer, comparativamente, trazê-lo como parte da reflexão sobre cinema ou sobre a indústria a que pertence, ou de que tem proveniência, que é o caso de Portugal. Temos de estar atentos e perceber que o tipo de cinema que se faz lá fora é um tipo de cinema que também se pode fazer aqui. E questões como diversidade étnico-racial ou narrativa que se conta, nesses territórios ou nesses ambientes, nós percebemos que são aspetos de produção que são relativos. Significa que os produtores não fazem, não é por uma questão de estratégia comercial, como é falado aqui. Ao participar nesses festivais nós vemos que, muitas vezes, filmes que nem são recebidos nos países onde os seus cineastas os produzem, conseguem ter uma grande projeção ao nível internacional. E garanto-te que há determinados filmes que aqui em Portugal, com dinheiro investido, não conseguem sair daqui. Então, como forma de trazer uma solução possível para determinados filmes, que acabam por ter uma assinatura mais nacionalista aqui em Portugal, eu proponho que haja não só o desejo do público, mas também o entendimento sensível e de honestidade intelectual por parte dos nossos produtores. Para que não fiquem tão enraizados nessa ideia de se somar pontos nas instituições que atribuem os orçamentos para os filmes. Nós sabemos que aqui o sistema funciona muito desta maneira. Os produtores acabam por abraçar filmes que consequentemente são propostos por diretores e diretoras que já tenham pontos, porque anteriormente fizeram um filme, um filme que foi financiado pela instituição que financia os filmes aqui em Portugal. Isso tornou-se um círculo vicioso e para aqueles que participam desse sistema é entendido como um dado adquirido, mas isso é falacioso a meu ver. E eu consigo ver isso porque a nossa cinematografia portuguesa tem caraterísticas que fazem com que seja genuína, no sentido em que nós olhamos e dizemos “epá, isto é português”. Só que é incompleto. Porque apenas um faz uso de todos os recursos humanos. E de histórias possíveis no universo português, como do ponto de vista sistémico ele não está atento e não reconhece que há grandes lacunas de diversidade, étnico-cultural e consequentemente narrativa, com a imposição demográfica do País. Esse é de facto o nosso calcanhar, tanto que é assim e ao mesmo tempo isso faz com que, disse há pouco e repito, muitos dos nossos filmes não consigam ter respaldo lá fora. Porque é um tipo de cinema funcionalista, porque funciona dentro do sistema. Aqueles que o dominam sentem-se confortáveis em fazer com que opere. Mas do ponto de vista crítico, construtivamente falando, eu acho que se nós estamos ainda a fazer uma caminhada muito lenta ainda em direção à inclusão de outros corpos nas narrativas portuguesas, à inclusão de outro tipo de histórias, nós precisamos de acelerar e ganhar consciência disso.


I: Isto não são histórias à parte de Portugal, são histórias que fazem parte de Portugal. Eu nasci aqui em Portugal, mas mesmo que não tivesse nascido, dadas as minhas origens, eu faço parte da história de Portugal. E existe a diferença da história oficial e da história oficiosa.


W: Gosto, gosto!


I: São outros caminhos que temos instigado nas nossas criações agora, fugindo da história única que dá nome ao livro da Chimamanda Ngozi Adichie.


W: Sim, é isso.


I: É fugir da própria história, é fugir da nossa essência. Automaticamente, não só como indivíduos micro, mas também no macro, enquanto um conjunto de células da mesma...


W: Comunidade e corpo social. Acho que o reparo que tu fizeste vai ao encontro daquilo que eu penso sobre esse conceito de culturalismo nacionalista, porque isso acaba por encaixotar/rotular/condicionar o olhar dos cidadãos que percecionam Portugal de uma maneira falaciosa, que não contempla as outras diversidades, as outras partes que foram sendo fragmentadas socialmente falando. E que na verdade são partes integrais da sociedade. E aqui eu estou a falar claramente do racismo sistémico, que polvilha...


I: E estrutural também.


W: Sim, acaba por ser estrutural, porque no fundo é uma herança histórica e que nos mostra, há dados, como uma parte significativa da Europa foi montada, foi criada. E se ela, como tu dizes, se vai atualizando, porque se entende como uma integrante da sua estruturalidade, significa que os pensamentos e movimentos divergentes, os movimentos de resgate e afirmação que visam desconstruir essa lógica hegemónica e desumanizante também precisam persistir. São sempre apartados, porque, para essa parte da sociedade que é culturalista nacionalista, as outras formas de estar e ser e de se afirmar enquanto indivíduo são formas que divergem dessa crença, dessa ideologia culturalista nacionalista. A menos que se desconstrua isso, e desconstruir esse pensamento hipercentrado no culturalismo nacionalista – entenda-se, para quem estiver a ler, que culturalismo nacionalista significa que a construção de uma identidade nacional se baseia em versões oficiosas da história, que são unilaterais e não multidimensionais ou multilaterais, e que foram fazendo com que a sociedade, e nomeadamente a sociedade portuguesa, a nossa população, entenda a composição demográfica, política e cultural do País a partir de um viés que se sobrepõe a todas as outras formas possíveis de se ser também português/portuguesa. Essa forma de ser português/portuguesa significam a imposição da forma culturalista nacionalista. Quando eu Welket Bungué, nascido na Guiné-Bissau, venho para Portugal, passo a ser português, cresço no Alentejo e em Lisboa, passo a ser alfacinha e alentejano, e por Lisboa pertencer a Portugal e Portugal pertencer à Europa, sou também europeu. E por estar em trânsito entendo-me como um cidadão do mundo globalizado, não tem como eu me entender unicamente como português. O que significa que, para aqueles que são adeptos ou que entendem que Portugal num olhar culturalista nacionalista tem de corresponder aos padrões, que eles consideram ser legitimadores do que é ser português, haverá sempre um conflito entre alguém que se perfila como eu ou alguém que se perfila como um português culturalista nacionalista. As histórias que fazem parte também de Portugal são histórias trazidas por esses corpos, que são corpos como o meu – corpos periféricos e que estão em trânsito, que são simultâneos –, este indivíduo que se entende como português, mas também guineense, como europeu. São histórias válidas e que têm de ser organicamente enquadradas nessa noção de culturalismo nacionalista português.


I: É importante porque, de maneira alguma nos estamos a colocar como não portugueses. Na verdade, estamos só a querer legitimar essa portugalidade.


W: Isso chama-se identificação. Não é por eu ter nascido em Portugal ou na Guiné-Bissau, é para além disso. Como é que eu me identifico.

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I: Mas isso são assuntos que realmente têm muitas ramificações e são muito potentes. Eu também reclamo a cultura portuguesa como minha. Eu sou muito portuguesa em muitas coisas. Eu nasci cá, formei-me cá. Nos espetáculos brincam sempre comigo, que eu sou a miss Estefânia. E Portugal tem essas relações... Foram relações violentas, houve mecanismos de violência sobre determinados corpos, e é disso que estamos a falar aqui. Na Cultura, não são diferentes esses mecanismos de violência, mas também temos um carinho e temos um afeto, talvez a síndrome de Estocolmo, essa paixão, identificar casa, de Portugal ser a nossa casa também. Apesar de sermos cidadãos do mundo, Portugal é a nossa casa. Tem essa “má água” – uma água parada que vamos sempre movimentando ativamente, para que não vire outra coisa. Por isso é que nós estamos aqui, por isso é que eu voltei para cá em 2016, depois de fazer várias performances sobre a Guiné-Bissau em português de Portugal ou em português do Brasil. E tu tiveste oportunidade de ver em 2016 a transmutação desse espetáculo, sobre a identidade de olhar para dentro. Sempre foi um dos nossos temas favoritos de irmandade e de troca.

Assim, para terminar a nossa conversa tão potente... Uma inspiração e um desejo? Vá, podem ser duas ou três.


W: Tu és uma grande inspiração para mim, claramente, Zuaa. Tu ensinas-me muito. E ajudaste-me a pôr-me em situações em que pude revelar outras dimensões do meu verdadeiro eu. E esta última temporada, foi essencial para virar uma página de um capítulo longo, de um atravessamento pessoal, e que agora faz parte da minha biografia. Poder agora ser teu parceiro num projeto tão sensível, sólido e ao mesmo tempo potente como o Reencarne foi um dos maiores privilégios enquanto ator. És uma grande atriz, uma grande companheira, e acho que nós acabamos por sublinhar genuinamente a presença daquilo que Portugal deixa em nós e daquilo que nós conseguimos fazer com que Portugal seja. Essa qualidade performática, essa nobreza de comportamento e de tomada de posição perante uma indústria, que tem uma história com o País, mas que também tem uma influência tão grande naquilo que é a produção de entretenimento e daquilo que é também a produção do pensamento crítico, relativamente às narrativas e aos corpos que compõem essas mesmas narrativas. Nós podermos estar a participar no projeto e termos sido tão graciosamente procurados, objetivamente pela direção do projeto, eu acho que isso sensivelmente é algo que precisamos de celebrar, com orgulho e com gratidão. Não é por acaso que estamos aqui os três a falar e eu tenho a oportunidade de dizer aqui que és mesmo uma grande inspiração.


I: É mútuo. Eu sou muito grata.


W: E tenho de dizer, sobre inspiração, a mulher negra, onde eu incluo as minhas mães, as minhas irmãs, e todas as minhas ancestrais. Porque o que elas fizeram por nós, e continuam a fazer, é de um amor incondicional e de uma inteligência incrível. Na materialidade onde nos encontramos, que é perpassada por todas as convenções, muitos de nós nem conseguimos entender como é que as nossas bisavós, avós, mães e irmãs conseguem manifestar, moldar, a nossa perceção de tempo – a nossa perceção existencial –, de tal modo que fazem com que nós possamos caminhar aqui e possamos ter um corpo que se regenera de uma maneira, do ponto de vista emocional, espiritual e físico, face ao pensamento nacionalista que é dominante na Europa – de alguma maneira fez com que nós nos tivéssemos abandonado dessa perceção de nós mesmos. Essas mulheres, essas mães, essas irmãs, que estão reencarnadas noutras peles e que quem olha para os corpos, através apenas da cor e da etnicidade, não consegue ver esse conhecimento, esse entendimento, essa generosidade, essa solidariedade maternal que tem a ver com esse abraço que existe. Ele existe e forma uma teia que nos abriga a todos. E eu estou a falar disto porque tenho cada vez mais acesso a essa codificação que nos foi deixada. Eu entendo-me como um outro Welket neste momento, que não é um Welket parado, é um Welket em movimento. O gerúndio seria o termo mais certo para usar aqui. Estou sendo um Welket diferente que, justamente, se conectou com essa luz interior que faz com que eu entenda tudo, cada vez mais com uma humildade genuína, que parte sobretudo do re-conhecimento e não da modéstia. Não há aqui nada por que sermos menos honestos ou humildes, no sentido ético do termo, porque o trabalho foi feito lá atrás. Há pessoas que podem continuar a partir desse trabalho feito, e outras que podem continuar na matriz, o que faz com que nós não consigamos ver as coisas como elas são.


I: Um desejo?


W: O meu desejo é continuar a poder ter esta conexão comigo mesmo. Durante muito tempo e inconscientemente atuei achando que estava a chegar ao alcance das coisas que poderiam servir, a mim, para me exprimir, mas não. Mas estava, de alguma maneira, a forjar possibilidades de ser um Welket e era uma projeção minha, mas também uma projeção que eu fazia com base naquilo que acreditava que as pessoas esperavam que eu fosse, tendo em conta as minhas responsabilidades inerentes enquanto artista em trânsito e enquanto cidadão que acaba por ser colocado nesse lugar de líder ou de role model. Mas esta liberdade que eu desejo continuar a nutrir é uma liberdade que, justamente, me traga sempre lucidez, essa que só pode ser alcançada quando nós estamos conectados com o nosso verdadeiro propósito. E esse verdadeiro propósito não é algo que possa ser projetado, é algo que se vai encontrando ao longo da caminhada. E para fazer essa caminhada nós precisamos de estar verdadeiramente abertos. E estar abertos significa despir-nos de crenças e padrões que nos tenham servido num determinado momento.

Eu desejo cada vez mais me autorreconhecer. Isto pode parecer uma coisa muito autocentrada, mas mais do que isso é um tipo de perceção do eu, que harmoniza o nosso corpo, o nosso espírito, a nossa mentalidade no lugar onde nós nos encontramos, porque o lugar onde nós nos encontramos também tem uma consciência. E para que esse lugar possa ter acesso à nossa consciência, que é uma consciência que está cada vez mais elevada, em si tem de ter o desejo de se curar também. A nossa missão não é uma missão que implica necessariamente que sejamos agentes nessa transformação. Não. Nós temos de ser sujeitos que recebem essa dádiva natural que faz com que nós consigamos nutrir a felicidade e o bem-estar em nós mesmos. Quando nós conseguirmos estar nesse estado, tudo à nossa volta poderá também ter acesso a isso. E não ao contrário. Porque não é deixar de acreditar, mas estou cada vez mais menos convencido, menos necessitado, de fazer o investimento transformativo essencialmente para o meio onde me encontro. Tento fazer esse trabalho para mim mesmo. Se eu tiver amor e uma consciência mais expandida, sei que naturalmente as pessoas poderão beber de mim. É como se eu me estivesse a tornar o jardim, o lindo jardim que quero ser, para que as borboletas possam vir ao meu encontro.


I: Butterfly effect. Gratidão pela partilha. Boas reflexões, simples, complexas e sofisticadas.

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