Helena Caldeira

Helena Caldeira

Entrevista por Miguel Amorim

Fotografia por Joe Hunt

Direção criativa e styling Joyce Doret

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Não se fecha numa só categoria, num só projeto, num só futuro. Move-se à mesma velocidade do seu pulsar artístico, mas sente falta de mais pausas. É irrequieta, acelerada, calma e pensadora na mesma medida, diz que a Arte pode ser o todo ou o nada e esta conversa entre pares e amigos que se admiram foi tudo isso.

Helena: Estou na sala de ballet onde comecei a ter aulas de ballet dos 6 aos 17 anos em Montemor. Achei que era um bom sítio para fazer a entrevista. Estou aqui com o meu coletivo artístico, a preparar a estreia do nosso próximo espetáculo. 


Miguel: Podemos começar por aí mesmo. Helena, tens uma companhia de Teatro, que se chama Bestiário, que já tem quantos anos de idade? 


H: Vamos fazer 5 anos em janeiro do próximo ano. Nós gostamos de acreditar que é uma estrutura artística porque não nos queremos balizar e nunca sabes o dia de amanhã, podemos querer fazer alguma coisa que não seja Teatro. 


M: Uma estrutura artística, ok. Então, e a vossa estrutura artística vai estrear agora um espetáculo de Teatro, certo? 


H: Sim. 


M: Não sei se queres falar um bocadinho sobre isso. 


H: Quando a revista sair, o espetáculo já vai ter estreado, mas como vamos ter digressão em 2025... Mas não faz mal, porque em 2024 ainda temos residência e depois em 2025 se tudo correr bem e o Teatro Nacional abrir nós havemos de ir para lá. Isto é o espetáculo com maior estrutura que a Bestiário já concretizou, ou irá concretizar já no dia 25, porque a equipa é muito, muito grande e temos muitos parceiros, nomeadamente o Teatro Nacional D. Maria II. E também nos propusemos a – mais uma vez, já tinha acontecido na última criação Lumina, a codireção artística era partilhada com o Manuel Abrantes, que é um desenhador de luz – não só ter uma visão do encenador, mas também de outra parte criativa do espetáculo. E, aqui neste caso, como estamos a tratar um tema que não nos é familiar, que é o ciganismo, nós convidamos a Maria Gil, que é uma mulher cigana ativista, para partilhar connosco a direção artística. Então, é a Maria Gil e a Teresa Vaz da Bestiário a fazerem a direção artística; e o Vasco Lello e a Kali Musa – a Kali é bailarina e o Vasco é ator também – a participarem neste projeto. E, no fundo, nós estamos a falar do anticiganismo. O projeto chama-se Homo Sacer e é um conceito para definir o homem que está fora da lei, que não tem identidade, que está à margem. E no fundo é o que nós queremos dizer, queremos com este espetáculo combater o anticiganismo, especialmente agora com os discursos populistas tão presentes na nossa política, em Portugal. Decidimos que podia ser interessante fazer este espetáculo e não é que esse seja o nosso maior objetivo, mas nós sempre nos inspirámos nas ciências sociais e políticas para encontrarmos os objetos de temática para os nossos espetáculos. E vou estrear em Montemor-O-Novo, que é a minha terra. É uma feliz coincidência, calhou estrearmos aqui, “em casa”, o maior projeto que já tivemos. Que é na minha terra, mas é também a nossa, porque nós somos uma família. Eu, a Teresa Vaz, o Afonso Viriato, o Miguel Ponte. E para nós é muito mais importante – e eu sei que tu partilhas deste sentimento, Miguel – as relações interpessoais do que o objeto, aquilo que se está a fazer. Porque no fundo é o que fica... Tipo, o Teatro aconteceu e acabou. 


M: O Teatro é muito efémero. 


H: Exato. E a prova viva de que o que importa são as relações é nós estarmos aqui a falar. O teatro já acabou, não vamos fazer o espetáculo novamente, acho eu, mas nós continuamos aqui. E já fizemos outros espetáculos juntos e estreitar as nossas relações é o mais importante. 


M: Em relação à tua estrutura artística, ao Bestiário, o porquê de terem criado essa estrutura: foi para vos assegurar algum trabalho enquanto artistas? Foi porque sentiram que existia uma lacuna no panorama teatral português? E, além disso, qual é a vossa relação entre o Moderno e o Clássico? 


H: Então, a necessidade de criar a associação, legalmente falando, é porque a estrutura artística precisa de estar legalizada, digamos assim, para podermos concorrer a apoios, subsídios, essas coisas todas que nos permitem criar um espetáculo e dar condições mais ou menos dignas a toda a gente para trabalhar. Nós conhecemo-nos na ESTC; eu entrei na ESTC e depois no segundo ano sai, porque estava superdesiludida com a escola, mas depois decidi voltar porque achava que tinha de acabar e felizmente fui entrar nesta turma onde encontrei estas três pessoas. Na altura, eles já estavam a fazer uma criação, que era da Teresa Vaz, uma peça para dois atores, e o Afonso estava a fazer a encenação. E eu entrei na turma deles e eles pensaram “esta miúda é fixe para entrar neste espetáculo” e convidaram-me, eu disse que sim, porque não tinha nada que fazer e queria divertir-me... Fazer coisas! Nós entendemo-nos os quatro superbem. A estreia foi no Teatro da Garagem no festival Try Better, Fail Better. E sem dinheiro nenhum, claro que o Teatro da Garagem deu um apoio mais de logística e algum dinheiro para comprarmos algumas coisas para o espetáculo, mas era assim uma coisa mesmo muito pouca. Aconteceu a estreia, correu bem, encontrámos uma linguagem interessante, que veio muito do [Jerzy] Grotowski, que é muito a área que a Teresa gosta de trabalhar, mais focada no corpo e não tanto na palavra. E assim que acabámos, que estreámos, o Miguel, assim num dia de celebração, acho que levou uma garrafa de vinho ou champanhe e disse “olhem, eu tenho ideia para fazer no próximo” e nós “aí é? Então, o que é?”; ele explicou-nos o que era e ficámos superentusiasmados e “ok, vamos fazer isso, bora formar uma associação artística”. A ideia foi tentar arranjar dinheiro para fazer isto e para arranjar dinheiro precisamos ter uma associação. Então vá, celebrámos, brindámos e ‘bora “vamos abrir uma associação”. No início, foi mais uma coisa de necessidade logística e financeira, ou seja, muito prática; o segundo espetáculo foi a Umbra, e depois já havia ideia para outro a seguir e cada vez começou a fazer mais sentido estabelecer esta estrutura. E tu falaste numa coisa, que é a lacuna da linguagem. Nós nunca pensámos nisso. Nós estávamos focados em fazer as coisas de que gostávamos. E acho que inevitavelmente porque é um grupo tão sui generis, porque cada um tem a sua linguagem e as suas referências e vivências – a Teresa é de Lisboa, o Miguel é de Faro, o Afonso é do Norte, eu sou do Alentejo. Todos com backgrounds completamente diferentes. Eu fiz dança aqui até aos meus 17 anos, depois fui estudar um curso de teatro que não tem nada a ver com a EPTC, que é uma coisa muito mais teatro pobre, teatro de rua... A Teresa foi para Espanha, para Valência, trabalhar sobre este teatro muito mais no corpo, e muito mais filosófico. O Miguel tirou Farmácia, fez o mestrado em Farmácia, e depois foi tirar uma licenciatura para a ESTC. O Afonso também tinha começado uma licenciatura em Ciências e depois é que foi para Lisboa, nunca tinha feito Teatro na vida. Portanto, temos referências completamente diferentes e a nossa linguagem surge dessa diferença. Organicamente aconteceu criarmos uma linguagem que não é muito comum agora, ainda, no panorama cultural em Portugal, pelo menos no Teatro. Cada vez estamos a usar menos a palavra e a usar mais o corpo, não sendo bailarinos, assumindo que somos atores.

E acho que isto responde um bocadinho ao final da pergunta, que era sobre a relação entre o contemporâneo e o clássico. Nós nunca pensámos no Teatro ou na performance para encontrar esse lugar clássico, mas também nunca tentámos fugir dele. Nunca aconteceu porque não faz parte das nossas referências, porque nenhum de nós tem essa formação. Às vezes mais do que clássico é ir até mais para trás. Lugares mais ritualizados, como o Grotowski... Ir mais àquilo que é a nossa génese, isto mais a Teresa, porque ela tem mais essa vertente. O Miguel tem uma vertente mais técnica e visual. Acho que essa combinação é interessante. 


M: Entretanto durante a tua resposta falaste do background de cada um, de onde é que cada um veio, e queria perguntar-te se já tiveste algum momento – porque eu lembro-me de ter um ou dois – de epifania, em que tu pensaste “eu quero ser atriz”. Quando é que foi esse momento em que um raio te atingiu e tu pensaste que era isto que querias fazer? 


H: Eu acho que não tive assim um raio. Eu quis muita coisa, mas durante muito tempo, e na altura assim decisiva, queria era ser bailarina. Porque eu comecei aqui com 6 anos, depois houve um ano que desisti porque é normal, é a adolescência e estava chateada. E depois pensei que queria voltar porque gostava mesmo e era o que queria ser. Ah, eu também cantava! E tinha aulas de canto, por isso, depois os meus hobbies eram sempre virados para isto. Também tive aulas de guitarra e de piano. Depois chegou a uma altura em que estava a dançar três estilos diferentes: o ballet (que depois tinha contemporâneo também), hip-hop e sevilhanas. Chegou a um ponto em que pensei que queria mesmo era ser bailarina. Fui ver como é que se entrava na Escola Superior de Dança. E depois chegou o último espetáculo aqui que todos os anos, no fim do ano letivo se apresenta, com todas as faixas etárias, das mais pequeninas até às mais velhas, e o espetáculo tem quase três horas... E naquele ano, a Amélia, que era a minha professora de ballet, decidiu fazer Alice No País das Maravilhas. E ela disse-me “tu vais ser o Chapeleiro e vais dançar sapateado” e eu “eu não sei dançar sapateado”. E ela disse-me “eu vou-te ensinar, umas coisas mais do flamenco e não sei quê, vou-te mandar vir uns sapatos e tu vais aprender isso, porque tu tens uma veia mais teatral, tu és a pessoa perfeita para ser o Chapeleiro”. 


M: Mas esse projeto era assim uma coisa mais musical? Tinha texto?


H: Não, não, era só dança. Tudo em ballet e contemporâneo. Havia a Alice, e depois havia o Chapeleiro Louco que dançava sapateado mal. E fazia assim umas maluqueiras, e era eu. Fiquei com aquilo que ela disse na cabeça, de ter uma veia mais teatral. Eu sonhava estar num palco e dançar para bué gente, sonhava estar num palco e cantar para bué gente. Mas nunca sonhei estar num palco e dizer um texto. Ela pôs-me a pensar naquilo. E curiosamente comecei a investigar sobre isso, escolas em Portugal. E eu ir para a EPTC porque descobri que era assim uma grande escola nas minhas pesquisas do Google... Só que depois os meus pais não me deixaram porque era secundário e não queriam que uma miúda do Alentejo fosse para ali; e nem sequer era Lisboa, era Cascais. E curiosamente abriu o primeiro curso de Artes do Espetáculo em Évora e eu fui logo, nem sequer pensei, fui logo. E a partir daí decidi que ia seguir carreira de atriz. Eu já tinha ideia de que queria ser bailarina, então fui para o curso de Artes do Espetáculo para explorar esta veia e depois chegou ao final e fiquei superindecisa se devia concorrer à Escola Superior de Dança ou para a Escola Superior de Teatro e Cinema. Mas depois como os filhos do meu professor, o filho que era da minha idade, o Miguel Abrantes que está agora a fazer o desenho deste espetáculo…


M: E do meu também, que eu vou estrear hoje. 


H: Eu sei, eu sei. Os pais deles foram meus professores. A mãe dele professora de Corpo e o pai dele de Interpretação. E o pai dele estudou na ESTC na altura da Alexandra Lencastre. E eles é que disseram “vai para esta escola, nós ajudamos-te com as audições”. E lá desisti um bocado de ir para a Escola Superior de Dança e concorri a tudo o que era escola de Teatro e depois entrei na ESTC e a Dança ficou de parte. 


M: Agora queria que tu refletisses um bocado sobre dois conceitos, que é o ator/atriz VS artista. O que é que tens a dizer em relação a isso? Sobre ser ator e artista ao mesmo tempo. 


H: Para mim quer dizer a mesma coisa, porque eu não consigo conceber o ator como não sendo artista. Para mim, o ator é alguém que está a criar a partir do momento em que agarra no texto, mesmo que estejas a trabalhar numa perspetiva mais clássica do Teatro, em que tens um texto e tens de decorar esse texto, e estás em cena, e depois fazes as marcações. Numa perspetiva clássica, mesmo aí, a partir do momento em que tu agarras no texto, és tu que estás a criar e a produzir pensamento, és tu que vais pôr cá para fora. És tu que estás a criar, nem que seja aquela personagem. Portanto, eu não consigo conceber nem acreditar em marionetas. Eu percebo de onde vem a tua pergunta, porque há a ideia de que o ator pode ser apenas uma ferramenta... 


M: Ou até se achas que todos os atores são artistas e conseguem ter a capacidade de se tornar artistas. Quem diz atores, diz todos os músicos conseguem ser artistas? Todos os pintores conseguem ser artistas? 


H: Essa pergunta é fodida. Eu acredito que sim, porque eu tenho esperança. Eu acredito que a partir do momento que tu és o ator, tu és artista. Agora, se há um ator que funciona melhor com indicações, se há um ator que funciona melhor com liberdade, se há o ator que é performer, se há o ator que é mais técnico... Isto são tudo variantes. Mas não há ninguém que possa entrar dentro de ti e pôr aquilo que é teu cá fora se não tu. E isso é um ofício da arte, por isso, os atores são artistas também. Quando tu estás a criar um projeto, tu vais beber daquilo que é, que o ator traz, aquilo que traz o sonoplasta, aquilo que traz o desenhador de luz, o figurinista... Por muito que haja uma figura, que é encenador, que é o coordenador do projeto, essa figura não consegue comandar tudo. Ela está a dirigir o projeto, mas depois cada um vem com a sua cena, e isso é que é o todo. E se nós nos apercebermos disso, e aceitarmos isso, e aliás pusermos essa responsabilidade também nos outros elementos no processo de criação do projeto ele vai enriquecer muito mais. Porque as pessoas estão livremente a pôr os seus inputs enquanto artistas. 


M: Há bocado estavas a falar que passaste pela Dança, pelo Canto também. Daqui para a frente, só te vês como atriz, a fazer trabalho de atriz, ou já tens outros planos para começares a trabalhar noutras vertentes da Arte? Se sim, quais? 


H: Olha, eu costumo dizer que não me importo nada de acabar com isto tudo e vou ali para a pastelaria do meu pai fazer bolos. Era capaz de fazer isso, porque eu imagino uma vida em que se tem de parar também mais, e não ter que corresponder com esta coisa de ter de estar sempre a produzir, a produzir. Mas isto é outra conversa... 

Eu não sou só atriz, e cada vez mais acho que isso se vai começar a refletir no meu trabalho, porque já vai deixar de dar para esconder. E tenho planos de poder estender essa Arte para outras áreas. Nomeadamente nós na Bestiário utilizamos muito o corpo também por causa disso, porque somos pessoas disponíveis para isso. Se eu não tivesse este background, a minha intervenção na Bestiário poderia ser mais textual. Mas não. É muito mais corporal porque eu tenho esse background e ele vai continuar a aparecer. Eu como artista, quero desenvolver essa parte e também quero desenvolver a parte musical. Foi uma coisa que eu fui pondo para baixo, para baixo, porque não há tempo para tudo, mas também surge em criações. Surge na Bestiário, surgiu no último espetáculo que fizemos juntos, aliás no Trouble, nós cantávamos... No último espetáculo também cantei, fiz uma versão de uma música. Não vai dar para continuar a esconder. Eu vou ter de abrir porque é isso que me faz sentir mais plena enquanto artista, essa simbiose. 


Helena Caldeira

Camisola JW Anderson na Stivali

Collants Calzedonia

Helena Caldeira

Camisola JW Anderson na Stivali

Collants Calzedonia

M: Em relação a isso, à forma como tu te vês como artista, tu sentes que existiram algumas referências para ti? Sejam espetáculos de Teatro, livros, filmes ou outras coisas que não sejam Arte. Referências que te marcaram como pessoa e como artista. Se quiseres partilhar uma ou duas, que te digam mesmo alguma coisa, que tu digas “eu acho que não estaria aqui se não fosse isto”. 


H: Eu acho que não estaria aqui se não fossem os meus pais, porque a minha mãe sempre me puxou, aliás até puxou de mais, sempre me empurrou para cumprir os meus sonhos. Ia inscrever-me em concursos de canto, era até... era demais! O meu pai ao início era um bocadinho contrário, mas depois percebeu que não havia nada a fazer. Sempre tive o apoio deles nesse sentido e isso foi o mais importante para eu estar aqui hoje. Ao nível artístico, eu acho que o que mudou mesmo... Quer dizer, não é que eu não tivesse acesso, mas eu não fui educada a ler, a não ser os livros que se dão na escola. Eu nunca vi os meus pais a ler um livro, nem sequer provavelmente o jornal. Os meus pais não são letrados nesse sentido, o meu pai tem uma pastelaria, a minha mãe tem um salão de cabeleireiro. Ninguém na minha família, sem ser a minha tia, lia livros. Nunca fui ao Teatro, até ir para o curso de Teatro. Acho que só fui aqueles teatros da escola, que não me fascinavam, e nós sabemos bem porquê. São simplistas. 

De maneira que as minhas referências até eu começar a estudar Arte são nulas. Eu nunca as tive. E depois fui para Évora para o curso de Artes do Espetáculo e comecei a ver espetáculos. E só quando vim para aqui para o Espaço do Tempo estagiar – e no fundo eu estava a estagiar a fazer trabalho de produção, mas apanhei a Plataforma Portuguesa de Artes Performativas, que é um festival que acontece aqui de 2 em 2 anos no Espaço do Tempo, onde eles trazem artistas portugueses, muitos que trabalhavam lá fora. E foi aí que eu fiquei “é mesmo isto que eu quero fazer”. Ainda para mais, porque a programação do Espaço do Tempo nessa altura era muito virada para a Dança, mas para coreógrafos que tinham uma perspetiva muito teatral das suas criações. Então era assim uma espécie de simbiose com a qual eu me identificava muito. Eu lembro-me de o Jonas & Lander, lembro-me daquela coreógrafa cabo-verdiana, Marlene Monteiro Freitas e a Flora Détraz... No fundo eram coreógrafos, percebes? Mas ainda assim, era uma coreografia muito performática, e era isso que eu queria fazer. E são essas as referências que tenho como produto que eu gostava de fazer e gosto de ver essencialmente. Claro que depois fui para Lisboa e comecei a ver outras coisas, umas coisas mais focadas no texto. Mas a minha praia é a performance propriamente dita. 


M: Entretanto tens tido um percurso muito bom no teu trabalho. Tens feito projetos muito fixes, na verdade. Relativamente a dois projetos, um uma coisa mais leve e outro uma pergunta mais séria, relativamente ao Andy e ao Trouble, do Gus Van Sant, tens algum episódio engraçado para contar? Alguma coisa engraçada, marcante, se tiveres podes ficar a pensar nisso para contares. E, depois, em relação a Rabo de Peixe, que foi outro projeto que acho que marca muito o teu percurso até agora: relação expectativa-resultado. Quando tu percebeste que ias fazer a série qual era a expectativa que tinhas e, depois, o resultado, o que é que sentes que isso mudou? 


H: Sobre o Andy, há muitos episódios engraçados, mas eu acho que o episódio que me marcou mais vai-te pôr um bocadinho em cheque. O episódio que me marcou mais, marcou mesmo, eu não me vou esquecer, até tenho a sensação mesmo vívida no meu corpo. Foi o primeiro dia em que chegámos. Andávamos a ensaiar noutros sítios e no primeiro dia em que nós vamos para o Teatro Nacional e pisámos o palco, em que toda a gente entra pelo teatro adentro, estavam-nos a mostrar o teatro, “agora é por aqui para o palco”... E o Miguel entra no palco, fica assim a olhar para a plateia e começa a chorar. A chorar, mas mesmo emocionado. E eu: “Miguel, o que é que se passa? Está tudo bem?” “Era o meu sonho vir para aqui, era o meu sonho como ator.” E eu comecei a ficar emocionada contigo e, de repente, já estava toda a gente abraçada com o Miguel e eu já estava a chorar também. Opá, foi um momento mesmo importante, até para a equipa, para nós nos apercebermos de que aquilo era uma coisa importante. E que nós éramos superjovens. Tu tinhas quantos anos quando isso aconteceu? 


M: Foi em que ano? Foi em 2021? Tinha 22 ou 23. 


H: Qual é que é o ator que com 22 ou 23 anos pisa o Teatro Nacional encenado pelo Gus Van Sant?


M: Iá, para mim aquilo estava mesmo a ser razão para chorar. Eu estava parvo com o que estava a acontecer. Desde que andava na escola que sonhava em ir para o Teatro Nacional. Quando aconteceu foi bom nas condições em que foi, e com o que grupo que foi. Foi ótimo. 


H: Deixa-me que te diga que não vai ser o último. 


M: Vamos ver. 


H: Não vai, não vai... 


M: E em relação a Rabo de Peixe, o que é que tens a dizer? Porque eu acho que foi um projeto que marcou mesmo o audiovisual português, as séries e a produção portuguesa. Acho que foi uma série que foi mesmo importante, por várias razões. 


H: Sim, foi importante, não só para o audiovisual português como estavas a dizer, mas eu acho que sim, o facto de estar numa plataforma de tão fácil acesso como a Netflix, e com uma marca tão presente, foi a catapulta perfeita para a série. E mesmo que a série não estivesse na Netflix eu acho que ia ter sucesso, mesmo com o público em Portugal em geral. Só que não ia ter esta dimensão de sucesso. Porque nem toda a gente ia estar a ver a RTP a ver as séries portuguesas que estão a ser feitas. Portanto, no fundo, se não fosse a Netflix, o Rabo de Peixe provavelmente ia acabar na RTP e ia demorar imenso tempo até chegar a toda a gente que a série era fixe. Portanto, não nos podemos esquecer que a Netflix teve um grande impulso no sucesso. Mas isso também não retira valor à série. E acho que nesse aspeto há muito a aprender do resultado. Não é bem a aprender, é quase uma janela de esperança aberta para que se possa continuar a investir no audiovisual em Portugal e nem é só um investimento governamental, porque esse já sabemos que tem de existir. Mas é mesmo investimento até privado, do público para o público. Sabendo que há retorno. E eu confiei no Augusto [Fraga] desde o início, desde a primeira reunião que tivemos, e nunca me vou esquecer dessa reunião, porque para mim foi fundamental para determinar a forma como eu ia encarar o projeto, porque eu acho que até à data não estava bem a acreditar; ia ser uma série portuguesa que ia para a Netflix, pronto. Mas a forma como o Augusto encarou aquilo e o facto de nunca nos ter falhado, também fez com que eu nunca quisesse falhar. Ele perguntou-nos “o que é que vocês esperam de mim enquanto realizador, o que é que esperam deste projeto, como é que vocês estão habituados a trabalhar e o que é que vocês gostavam que acontecesse no método de trabalho. E eu também quero dizer-vos a vocês, o que é que eu espero de vocês, do vosso trabalho”. Ou seja, ele abriu espaço para o diálogo, mas também nos responsabilizou, porque nós éramos os protagonistas e era importante que estivéssemos todos na mesma página. Claro que há sempre aprendizagem, em relação à produção e coisas financeiras. E há sempre coisas a melhorar, mas eu às vezes até fico triste porque não sei se vou ter oportunidade de fazer um projeto assim em Portugal outra vez. Porque dedicou-se tanto tempo à pré-produção, a pensar o projeto, como eu nunca tive num outro projeto qualquer. Porque não há dinheiro para isso. 


M: Sim, às vezes, entras de paraquedas no projeto. 


H: E depois vê-se. Vê-se que faltou pré-produção e vê-se no resultado final. Nomeadamente na química entre os atores, isso também vem de um investimento de um período prévio de ensaios. Acho que essas coisas fazem toda a diferença. E depois também houve uma diferença na minha carreira, a verdade é essa. Porque até à data só poucas pessoas da área é que conheciam o meu trabalho, e claro que a plataforma Netflix ajudou imenso e de repente aquilo que eu andava a ansiar há muito tempo, por castings em Cinema, essas coisas, começaram a acontecer. Porque agora as pessoas sabem “olha existe esta rapariga”, que até à data não sabiam que existia. E isso é um bocadinho agridoce, confesso. 


M: Porque sentes que se calhar outras coisas que tu fizeste e que também tens orgulho... 


H: A questão é essa. É que Rabo de Peixe não me define enquanto atriz. De todo. Eu acho sempre que posso fazer melhor, a verdade é essa. Mas eu estou orgulhosa do que fiz, porque na altura, ou com a idade que tinha e as ferramentas que tinha, no contexto profissional e até pessoal – porque essas coisas também influenciam –, aquilo foi o melhor que consegui fazer. Mas não define de todo o meu trabalho e quem for ver o espetáculo da Bestiário vai perceber isso por exemplo. Eu digo que é agridoce porque eu sinto que isto é tanta coisa em conjunto com os meus amigos na Bestiário e que chegámos a tantos, e às vezes é difícil, porque mandas e-mails a programadores e eles não te respondem ou dizem que vão ver e não vão. A mesma coisa com casting directors, que não foi o caso, porque eu só estou em Rabo de Peixe porque o casting director foi ver um espetáculo de Teatro e pensou “ah, esta rapariga!”. E isto é mais uma prova de que Rabo de Peixe não me define, porque ele foi ver um espetáculo que não tinha nada a ver e foi por causa disso que eu fiz o casting. E eu acho que isto toca a todos os atores, porque todos nós, vá a maioria, faz Teatro. Pronto, se formos a falar de Televisão, é outra dinâmica... mas também há muitos atores de Televisão que fazem Cinema e Teatro. Mas às vezes os do Teatro têm muita dificuldade em sair do Teatro, e nós andamos aqui a tentar chegar a outras áreas e é muito difícil. E há pessoas com um trabalho fantástico no Teatro que não conseguem furar isso. 


M: Iá, e se for preciso já têm 30 anos de carreira e não saem do trabalho. 


H: E não é mau, só depende daquilo que tu queres. 


M: Do que ambicionas, tal e qual. 


H: Eu não posso dizer que já tenho uma grande carreira no Teatro e que agora é que me descobriram. Não é nada disso que eu estou a dizer. O que estou a dizer é que o meu objetivo agora, e eu estou superentusiasmada com a segunda temporada e quero muito que seja ainda melhor que a primeira, mas eu também quero mostrar às pessoas que a atriz que fez o Rabo de Peixe não é só aquilo. Não é só aquela miúda bad ass, revoltada e sexy – porque depois também há essa questão do feminino, que para mim é uma questão, para mim enquanto pessoa singular. 


M: Agora queria perguntar-te uma coisa que não está diretamente relacionada com o nosso trabalho, mas também pode estar, que é: o que é que mais te incomoda em Lisboa, que é a cidade onde tu vives? E o que é que mais te incomoda em Portugal, o país onde tu nasceste? 


H: Ai, Miguel.  


M: Pode ser breve. 


H: Não, não...! Tu és fantástico. Eu adoro-te. Tu vais certeiro aos tópicos que têm andado na minha cabeça, e nem sequer temos falado sobre isso. 

Então, o que é que me incomoda mais na cidade onde eu vivo... Porque a minha cidade para mim é Montemor. Eu acho que é o ritmo e a distância. Em Montemor, eu posso andar a cidade toda a pé, em Montemor eu percorro uma rua e vou cumprimentar no mínimo duas pessoas, vou gastar muito menos dinheiro, vou consumir muito menos recursos, vou diminuir muito mais a minha pegada ecológica e isso faz-me sentir menos stressada. E eu consigo gerir muito melhor o meu tempo, porque demoro 5 minutos a ir de um lado para o outro, e estou rodeada de Natureza. E isso também me deixa muito menos stressada. Em Lisboa, tenho de planear muito mais o meu dia, demoro muito mais tempo, os meus amigos estão todos lá, mas eu não os consigo ver porque eles estão no mesmo ritmo que eu, alucinado. Este ritmo que nos impõem. E eu fico muito mais ansiosa. Ou seja, o estímulo é maior, mas para mim, é muito mais stressante. Até porque eu às vezes não quero ser estimulada assim tanto, e quero encontrar o meu próprio estímulo. Aliás, criar o meu próprio estímulo e ter espaço para isso. E quando estou a ser bombardeada com informação a toda a hora, sinto que estou a ser abafada e que não tenho espaço e que não tenho voz. E eu sinceramente estou em Lisboa, porque preciso de estar em Lisboa, especialmente neste momento da minha vida em que a minha carreira está a começar. Porque se não, eu estava aqui. E os meus amigos vinham aqui ter comigo, porque eu sei que eles também gostam de estar aqui. 

E, em Portugal, o que é que me incomoda mais? Eu acho que é a falta de esperança, a falta de atitude, o cansaço que acho que é geral as pessoas em Portugal estão desperançadas mesmo, já não têm forças para lutar por nada. E o resultado dos projetos é precisamente isso: “já não consigo lutar mais, fica assim”. Porque as pessoas estão cansadas de não serem ouvidas, de não serem valorizadas, e os dias são muito grandes, os dias laborais são muito grandes. E as pessoas não têm tempo para pensar nelas, quanto mais para pensar no outro. E incomoda-me que em Portugal se esteja a perder esta vontade, esta garra, de nos fazermos ouvir. De criar qualquer coisa, de dizer não. Isto incomoda-me muito. E isto é um assunto mesmo atual em mim, que eu própria estou a trabalhar em mim, neste momento. Não, não podes aceitar tudo. Não é os trabalhos, é “não te deixes ir abaixo, não percas a tua força, não deixes”. 


M: Não digas que sim a tudo. 


H: Sim. Não te desleixes, não te deixes ficar, não te amoleças.  


M: Tu estavas a falar sobre isso, sobre as coisas se estarem a desvanecer. Não só em Portugal, mas no mundo, do que nós conhecemos e temos acesso pelo menos, achas que a Arte e o Teatro em específico estão a morrer? Vão morrer eventualmente? 


H: Morrer não sei. Eu não tenho conhecimento nem ferramentas para fazer uma análise dessas. Mas sinto e sei que tudo se transforma e a Arte também está a fazer essa transformação. A Arte é muito mais um instrumento capitalista, do que um instrumento de pensamento e de entretenimento puro. Porque a Arte não serve só para educar, não serve só para ser uma ferramenta de pensamento. A Arte também pode servir para nada, e isso é maravilhoso e é o que faz falta. Claro que também faz falta produzir pensamento e essas coisas todas. Mas não podemos também balizar a Arte e limitar a criação artística a uma Arte que educa, a uma Arte que está ao serviço da sociedade. Às vezes não está ao serviço de nada. A Arte é livre. 

E, neste momento, está ao serviço do capitalismo e das massas e acho que é essa a transformação que a Arte está a fazer. No Teatro também, no mundo não sei, porque não faço assim tantas viagens como eu gostaria, mas em Portugal há mais camadas do que apenas isso. O Teatro em Portugal conta-se pelos dedos de uma mão os que são privados e que têm liberdade para fazer os seus próprios orçamentos e temas e tudo e equipas. Os outros todos são governamentais e têm de cumprir uma série de requisitos para ganharem uma candidatura e alguns desses requisitos são até no que diz respeito à equipa e aos temas, de maneira que isto já está a condicionar que tipo de Arte é que tu vês. Mas sim, não sei se a Arte está a morrer, mas está a perder liberdade de expressão. 


M: Última pergunta. Existe um filme do [Ingmar] Bergman que é o Persona. O filme começa com um enfermeira a chegar-se a uma médica, aliás entra uma enfermeira numa sala e está uma médica e diz: “Entretanto, aconteceu isto, a senhora Vogler, que é uma atriz, ela estava em cena no Teatro, estava a fazer a Electra [que por acaso é a peça que eu estou a fazer agora] e ela calou-se de repente.” Olhou à volta, ficou calada, depois foi-se embora, foi para casa e no dia seguinte não apareceu no Teatro. E dizem no filme que isto foi uma escolha dela, ela decidiu calar-se e ficar deitada. E eu queria perguntar-te a ti, como Helena e como artista, se tu eras capaz – ou se vais ser capaz – de te calar, e se vês isso a acontecer. Quando é que tu no dia olhas à tua volta e dizes “acabou esta palhaçada” e dizes “vou ficar calada”. 


H: Olha para te ser sincera eu penso isso todos os dias. 


M: E achas que algum dia vais chegar a isso?



H: Eu acho que não. 


M: Até há uma fala no texto em que depois a enfermeira, na cena a seguir a conhecer esta atriz e de ter o diagnóstico dentro do possível, ela diz: “Eu acho que não vou ser capaz de curá-la porque ela tem muita força mental. Ela escolheu estar calada, ela não sofre de nada, está bem mentalmente, está bem de saúde, ela escolheu, portanto, tem uma grande força mental.” Só para acrescentar isto. 


H: Eu não sei o que é que vai acontecer na vida, em que projetos é que eu me vou enfiar. O que é que vai acontecer até politicamente, porque as guerras estão tão próximas, a extrema-direita está tão próxima, que não sei o que é que vai acontecer. Mas muito dificilmente me vejo a baixar os braços. Mas é tão difícil, especialmente em Portugal, porque tens de ir contra tanta camada, tanto patamar, tanta burocracia, tanto estereótipo. Que às vezes penso “pá, eu vou só mesmo fazer bolos”. Também é uma Arte, uma criação, portanto why not? Mas o meu espírito é demasiado inquieto, num bom sentido, porque eu acho que o espírito do artista está sempre a fervilhar.

Caldeira 1

Casaco Mango

Caldeira 10

Casaco Pinko

Soutien e cuecas Intimissimi

Collants Calzedonia

Caldeira 11
Caldeira 12

Blazer e soutien Jen Ceballos x Mango

Calças Parfois

Caldeira 13

Blazer e soutien Jen Ceballos x Mango

Calças Parfois

Caldeira 14

Bomber Noir Kei Ninomiya na Stivali

Collants Calzedonia

Caldeira 15

Casaco e calças Zadig & Voltaire

Soutien Jen Ceballos x Mango

Collants Calzedonia

Caldeira 16

Casaco e calças Zadig & Voltaire

Soutien Jen Ceballos x Mango

Collants Calzedonia

Caldeira 2

T-shirt Zadig & Voltaire

Calções Mango

Caldeira 3

T-shirt Zadig & Voltaire

Calções Mango

Caldeira 4

Sobretudo Jacquemus na Stivali

Botas Luis Onofre

Caldeira 5

Sobretudo Jacquemus na Stivali

Botas Luis Onofre

Caldeira 6

Camisola JW Anderson na Stivali

Collants Calzedonia

Caldeira 7

Camisola JW Anderson na Stivali

Collants Calzedonia

Caldeira 8

Camisola JW Anderson na Stivali

Collants Calzedonia

Caldeira 9

Casaco Pinko

Soutien e cuecas Intimissimi

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Helena Caldeira
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