Miguel Nunes

Miguel Nunes

Entrevista por Joana de Verona

Fotografia Frederico Martins

Styling Nelly Gonçalves

Foi Joana que lhe pediu o número. “Miguel Mano” ficou guardado no telemóvel ainda em 2006, quando partilhavam ecrã em Morangos com Açúcar. Tornaram-se amigos, dentro e fora do trabalho, descobriram-se e vão-se redescobrindo envoltos num respeito e admiração que torneia a melhor das amizades. Um certo à vontade um com um outro, como explica Joana, e um sentido de mundo parecido, assentou num lugar de escuta que abre espaço a silêncios tanto quanto uma dose de ‘loucura’ saudável partilhada. Uma amizade de adolescência que virou uma relação adulta, uma vigília conjunta que trouxe um crescimento que esperam continuar a alimentar, aqui e agora ou em qualquer parte do mundo, como acontece tantas vezes. Ela – “ela, uma pessoa muito importante com um sentido de justiça enorme” - atende o telemóvel nos Açores, onde está absorta em ensaios. Ele – “a estabilidade que é como uma âncora na minha vida, um miúdo humilde com um coração maravilhoso” – , ele está sentado à sua secretária, mas podia estar onde quer que fosse. Ele com ela sente-se sempre em casa.

 JV – Pronto Miguel queria começar por saber se tu sentes também esta coisa de que é um privilégio grande o nosso trabalho porque é preciso muita coragem – e muita humildade.
E se tu sentes que por teres este trabalho, esta atividade artística, atividade profissional, se isso também te tem dado ao longo do teu crescimento enquanto ser humano uma maior maturidade, ou seja, se tu sentes que esse trabalho te dá uma consciência de ti e uma maturidade maior.           


MN –
Eu sinto que sim. Apesar de achar que essa palavra que usaste ao início é demasiado forte e não sinto que ela se apropria ao nosso trabalho -  a coragem. Acho que coragem é uma coisa que está ligada mais com o instinto de sobrevivência, acho que o nosso trabalho não tem necessariamente a ver com um trabalho de coragem. Mas que é um trabalho emocionalmente muito profundo, que nos faz e a mim me faz questionar valores éticos também e para isso sim, eu acho que tem que ser uma pessoa com esses valores bem sedimentados, para depois poder questioná-los em cena, para poder questioná-lo através dos personagens. Esse exercício do questionamento também - que é um exercício de compreensão do nosso interior, mas do outro, com quem contracenamos, dos outros, dos espaços, é, de facto, um privilégio poder fazê-lo e poder fazê-lo com colegas e depois com companhia como a tua, por exemplo, e a do Pedro [Caeiro]. No sentido de que partilhamos este interesse comum, esta profissão e a necessidade de aprofundarmos o trabalho. E acho que sim. Acho que esse acompanhamento é um privilégio.


JV – Sim, não coragem. Claro que há trabalhos, como os ligados à saúde, resgate de pessoas e a manter vidas, que têm essa coragem latente de uma forma mais clara. Quando eu dizia coragem era no sentido de nós escolhermos este modo de vida, porque nós nunca sabemos exatamente quando é que temos trabalho, quando é que não temos...Coragem relacionada com o nosso corpo e as nossas emoções serem moldados à figura que estás a construir, à história que estás a contar.  Era nesse sentido.
Mas comecemos com a Glória que é o teu trabalho mais recente e que é um trabalho tão bonito, tão bem feito. E parece-me que é um trabalho importante a nível de uma exigência, de uma qualidade e de te colocar no mapa, e mesmo para o nosso país, e que possa abrir caminhos. Tu tiveste este protagonista, este anfitrião, e tiveste uma ligação muito intensa com o trabalho, até porque acaba por ser uma série de cinco meses que é bastante tempo. O que é que tu gostavas de destacar desta experiência da tua vida?         
 


MN –
Olha o facto deste grupo que se encontrou ter reunido pessoas com muita qualidade profissional e humana. E que para a altura que estávamos a viver sinto que isso foi essencial e que se tem demonstrado na reação das pessoas, que todos os dias nos dizem o quanto gostam da série e o quanto gostavam que continuasse. De facto, está-se a criar aqui uma ligação com este trabalho muito especial, sinto isso nas palavras das pessoas, como comentam, como chegam de uma forma emotiva, às vezes, para dizer que estão orgulhosas... Era uma palavra que ao início até me fazia alguma confusão, porque acho que ainda não compreendo muito bem o que é isso do público poder ter orgulho no trabalho que um artista faz, mas não sei às vezes de pessoas que pode ser uma coisa parecida com os atletas que representam a seleção nacional e vão lá fora. D e repente, as pessoas sentem que há um bocadinho delas que está ali também. E eu acho que isso é especial. Eu não trabalho com esse objetivo, trabalho com o intuito de fazer o melhor possível e de chegar ao público. Prezo bastante esse chegar ao público com esta extrema qualidade, que acho que nós conseguimos, e é realmente isso que eu acho que é mais importante. Agora, é sempre um caminho difícil de perspetivar e fazer uma expectativa em relação ao que vai ser a receção.  Este trabalho foi também um privilégio por poder ter esse lugar destacado de quase ser um anfitrião de todos os atores que por lá iam passando, porque estava lá todos os dias e é um personagem que guia a série toda.
E depois também me fez conhecer alguns atores que eu que eu já conhecia de uma forma distante, que admirava o trabalho, mas tive oportunidade de contracenar com eles, estreitar relações com pessoas que já conhecia e depois conhecer muitos profissionais que ainda não tinha conhecido. Como realizador, Tiago Guedes, que eu acho que é uma pessoa exemplar no que diz respeito no tipo de liderança de um projeto desta envergadura. A sua educação, a sua delicadeza, e depois a forma como dirige os atores. Acho que foi algo muito feliz mesmo.


JV – Usaste a palavra orgulho em relação ao público – achas que essa relação com o público se dá também por ser uma história de época? Uma história que, se calhar, muitas pessoas desconheciam, que se passa sobre algo que aconteceu na realidade. Há esse orgulho por parte da história não ser totalmente ficção, não é por ser por ser real, o caminho histórico.


MN –
Sim sim, eu acho que existe esse lado das pessoas sentirem que algumas são histórias reais, que o espaço é real, aconteceu, existiu, existe ainda hoje, degradado. Aconteceu uma coisa curiosa, que foi uma senhora que me escreveu da Alemanha a dizer que estava a ver a série e que o personagem do João era o marido dela. Explicou-me que o marido dela tinha sido um agente do KGB na mesma rádio, mas em Munique. E então ela sentia que ao ver a série estava a ver o marido que já tinha morrido e até me enviou um link com um livro sobre a vida dele e tudo.
E depois também tem um lado de que esta plataforma é uma plataforma que consegue atingir um grande número de públicos. E mesmo aqui em Portugal, um grande número de pessoas é público da plataforma mas via conteúdos maioritariamente internacionais. De repente pode ver um conteúdo nacional e que gosta muito e também está relacionado com o orgulho.
Vem em boa em boa hora porque tivemos um ano muito difícil, porque temos profissionais com muita qualidade em Portugal, é um projeto que abre as portas e que agora estão abertas para todos nós.


JV – É impressionante, não é? Portugal em termos de território, é um país tão pequeno e em termos de talento nas várias áreas há isso: muito talento e há muita resistência. É um povo muito resistente. Que consegue fazer Arte com poucos meios. É curioso e vai à luta e há muito talento, isso é mesmo... é mesmo importante, acho eu. Não sei se concordas ou se sentes que já está diferente.  Que é preciso que haja um aval exterior de outro país para que os portugueses e portuguesas se sintam capazes, competentes. Sente-se ainda um certo resquício de uma característica enquanto povo de não se valorizarem tanto, não sei se é por ser um pais pequeno à beira mar plantado. E quanto mais se trabalha com outras realidades ganhas consciência de como Portugal tem características fortíssimas. Não sei se sentes que essa valorização embora esteja mais forte parece que ainda precisa de...


MN –
Num trabalho como este, que tem uma divulgação muito grande e que chega realmente a um público maior, acontece que em muitas entrevistas muitos jornalistas acabam por perguntar ‘então, e agora ir para Hollywood?’, que é uma pergunta que se faz muito quando os atores ou atrizes portuguesas fazem um projeto que é muito divulgado e parece que a expectativa está do lado do próprio, da própria pergunta e do jornalista, em ver este ator ir embora de Portugal.
Mas na verdade, eu acho que não, que não tem que ser assim. Hollywood pode vir para cá. Como estas grandes distribuidoras podem vir para cá e podem produzir histórias nossas. Pensei muito sobre isto e foi semelhante a quando comecei a estudar teatro, que ponderei ir para fora, na altura em que estava a ponderar ou ir para fora ou ir para o conservatório. De facto, pensei não tem nenhum sentido ir primeiro estudar teatro numa língua que não é a minha língua materna e fazer o caminho inverso e tentar dominar as ferramentas do ator numa língua que não é a minha língua, que não faz parte também da minha identidade. Ou seja, aprofundar essa relação da nossa língua portuguesa nas histórias que vamos contando também é extremamente importante e é um caminho que eu quero continuar a fazer e que eu acho que temos cada vez mais espaço para fazer e com mais meios. Se nos apresentam mais meios nós somos capazes de fazer com mais qualidade ainda, como já conseguimos provar - não só nesta série, mas noutras séries também.
É uma prova de que o público português também que está a gostar desta série, quer uma continuidade de trabalhos no audiovisual e do cinema, com a qualidade dos profissionais daqui. Portanto, acho que também merecemos outro tipo de olhar da própria parte dos governantes sobre o nosso trabalho, que nos permita ficar e continuar a fazer trabalhos cada vez melhores. Em vez de queremos deixar partir toda a gente.


JV – Claro, mais valorização em relação ao setor da cultura em Portugal da parte do Governo que não seja aquela ideia um bocado antiga que queres ver um bom espetáculo, uma boa obra, vais a Paris ou vais a Londres. Não, calma. Há muitas boas coisas feitas em Portugal, com muita qualidade, além de que não deixa de ser um provincianismo, não é? Portanto, sim, portanto, no fundo era isto. Essa entrevista serve para dizermos que é preciso mais incentivo por parte do governo português. Um olhar mais respeitoso pelos fazedores de Arte em Portugal, na medida em que é uma profissão que emprega muita gente e em que deve ser valorizada.


MN –
No ano passado tivemos o exemplo maior disso, de que a cultura é extremamente importante, ou não fosse não sei como é que teríamos sobrevivido a uma pandemia com sucessivos confinamentos. O que seria de nós sem aceder a cultura, mesmo que restrita a espaço virtual.
E bom é isso, e agora tu estás nos Açores e vais fazer um espetáculo.


JV – Sim, o teatro Meridional. Que é também a pergunta que queria fazer a seguir, em relação ao Miguel intérprete relacionado com as artes performativas: estavas a falar que querias aprofundar a tua relação com a palavra falada portuguesa. O que querias dizer com isso é que estás com vontade de cada vez mais explorar teatro de texto ou cada vez mais fazer teatro em português? Não percebi exatamente.


MN –
Estava a referir-me na altura, quando decidi entre estudar teatro aqui ou fora, pensei nisso, que precisava aprofundar essa relação com a minha língua nas artes performativas.

Miguel Nunes

Jacket, shirt and trousers Inês Torcato
Shoes Carlos Santos


JV – Mas ainda queres dar continuidade a esse trabalho? Porque estiveste agora a trabalhar recentemente em três espetáculos, experiências performativas, teatrais, bastante diferentes. Gostava de perceber se te apetece falar sobre isso.


MN –
Sim trabalhar com o teatro meridional para mim foi uma grande surpresa o convite que o Miguel Seabra me fez, para a Teoria da Relatividade. Foi um trabalho em que conseguimos mergulhar de uma forma muito especial, porque eu acho que o Teatro Meridional tem uma aura enquanto espaço e alimentada pelas pessoas que dirigem a companhia que são também muito especiais, num levantar do trabalho do ator, no próprio significado do que é que é uma companhia teatral. E tive a felicidade de fazer parte desse projeto, de trabalhar com três atores com quem nunca tinha trabalhado - a Lígia Roque, Alfredo Brito e o Emanuel Arada - e de fazermos um texto que tratava precisamente uma coisa que é muito falada nos últimos tempos e que é a possibilidade de voltarmos a um sistema político não democrático e que condiciona as nossas liberdades e garantias. E a mim competia-me estar do lado do opressor, enfim, que não é novidade nenhuma tendo em conta a minha aparência toda [risos], nunca vou conseguir deixar de pertencer a pelo menos fisionomicamente a este lado. E coube-me uma tarefa muito difícil, que foi descobrir esse personagem - um polícia que tratava de restringir a liberdade de uma escritora que tinha acabado de lançar um livro e que estava a ser acusada de fazer uma crítica ao Primeiro-Ministro. Então eu era um dos inspetores que ia a casa dela e que basicamente a tentava manipular para proibir a que lançasse aquele livro. E esta manipulação tinha em si também alguma violência física. E são tudo, foram tudo questões difíceis de trabalhar, de encontrar. Precisamente porque me colocam questões de ética, de moral, em cima da mesa e no corpo e nas palavras. Foi um trabalho emocionalmente muito profundo e muito prazeroso ao mesmo tempo, mas para mim era uma insegurança muito grande a cada espetáculo que fazíamos.  Nunca sabia muito bem como é que iria correr. Não sabia muito bem se estava a ter prazer ou não em fazer aquilo, porque era uma dúvida, era uma dúvida constante.
E depois em Guimarães, o Arquivo Presente de Guimarães, foi um projeto muito diferente, que também mexeu com algumas memórias que eu tinha da própria cidade, muito ligado a um filme que tinha feito lá. E também foi um reencontro para além dessa memória, foi um reencontro com uma colega do conservatório que hoje em dia é interprete e encenadora, a Rita Morais, e que me convidou para ser este personagem meio indefinido, se era um homem, se era uma nuvem, se era uma noite, se era uma música. Portanto, era um corpo bastante indefinido e muito, muito influenciado pela literatura do Raul Brandão, que era também de Guimarães. E foi um projeto muito bonito que eu gostei muito de fazer também.
E pronto, o projeto com o André Uerba, a performance Um buraco do tamanho do teu toque, foi muito, muito quê? [risos] Foi um projeto que me trouxe memórias do meu corpo. É um projeto totalmente ligado à linguagem física e não verbal, onde se pretendia explorar a intimidade através do corpo, do toque entre os intérpretes e o interessante é que aquele grupo misturava pessoas com backgrounds muito diferentes de dança, de teatro, de cinema, uma pessoa de terapia que era terapeuta sexual.O André juntou-nos com este intuito de trazermos esses nossos backgrounds para dentro de um laboratório físico, na tentativa de descobrir e revelar relações de toque entre nós e isso para mim foi uma grande novidade. Foi dedicar quatro semanas da minha vida e diariamente muitas horas a ter uma atenção muito diferente aos outros colegas e uma atenção que era sobretudo através da observação e do toque. E isso também revelou em mim um levantamento de muitas memórias que eu tinha ligadas ao meu corpo, que na altura te disse, que eu Não fazia ideia do que elas estavam guardadas naquele lugar do corpo. Essa memória física, esse lugar do toque da intimidade sem a palavra, foi uma grande descoberta e um projeto muito diferente daquilo a que eu estava habituado a fazer. Foi um risco, mas um risco que eu fiquei muito feliz de ter tomado.


JV – É a tal coisa da memória celular, das células terem memória nossa. O corpo é muito, muito inteligente, guarda informações. O corpo não se esquece. E isso é muito forte. E ter a oportunidade de fazer um trabalho inteiramente à volta disso, é bastante direcionado e diferente e específico.
Falaste de uma coisa interessante que é o laboratório físico. É no fundo o nosso trabalho. Às vezes mais físico, às vezes mais sensorial, analítico, verbal, mas estamos sempre em constante pesquisa. E é nesse sentido que eu falo da coragem. Usando uma frase do nosso professor de conservatório, “a coragem de aquecer a vontade para te disponibilizares para te investigares”. Nós somos investigadores de nós próprios e através de nós tentarmos encontrar denominadores comuns e coisas que esperemos que comuniquem com os outros e façam os outros sentir. No fundo é como se fôssemos veículos, invocamos coisas, palavras, imagens, informações, passam por nós e chegam ao público. Com a esperança de crescer e que comunique e transforme alguma coisa nas pessoas.


MN –
É laboratório, é tubo de ensaio, às vezes somos ratos. Somos tudo.


JV – E sobre a questão de justamente sermos tantas coisas e estarmos disponíveis nesta pesquisa, nesta articulação tão grande que se faz, a tua vontade de criar e de realizar e passares para feitor, de concretizares não só de dentro mas de fora, vem de onde? Sentes-te impelido a explorar outras coisas, vem de uma história que queres contar, do facto de gostares muito de ser observador?


MN –
Vem desses lugares todos, vem da necessidade de explorar histórias que ainda não explorei enquanto intérprete, por exemplo, e que posso fazer não só enquanto intérprete, mas também enquanto realizador. Vem desse interesse também em conhecer mais como dirigir os atores. Vem de muitas vezes estar dentro de cena e enquanto estou a fazer também ter a capacidade de observar como estamos a fazer a cena e de como, enquanto atores, vamos guiando ou direcionando a cena mais para aqui ou mais para ali e nos deixamos surpreender com as propostas uns dos outros. Esses encontros instigam-me a querer experimentar de facto se eu posso estar do lado da realização. Agora também tenho noção que não pode ser apenas esta ligação com os atores que me faz criar estas histórias. Também tem de ser um sentido estético, um sentido de produção que deu se iniciou com o Anjo [curta-metragem realizada por Miguel Nunes em 2018] e que espero que tenha continuidade.


JV – E tu estás com quê, 33?


MN –
Sim, sim.


JV – Há alguma coisa na tua vida que tu gostavas muito, que acontecesse, que concretizasses, de vida profissional artística... Assim, alguma coisa, alguma área, que tu gostavas de aprofundar mais?


MN –
[risos] Ela está fazendo essa pergunta porque ela sabe. Sim sim, a música. Mas ainda vai chegar a hora. Tenho que me dedicar primeiro a aprender instrumento e depois decidirei o que fazer em relação à música.


JV – Tens uma ligação forte com a música. Com o tocar e aparelho vocal, não é?


MN –
Sim, a minha relação é mais com a voz, que já vem desde pequenino. Na verdade, eu sempre gostei muito de cantar desde criança. Muito influenciado pela família,  a minha mãe, pelos meus tios que tocam e que precisavam de acompanhamento para a coisa não ficar aborrecida.


JV – A tua mãe canta? Em casa descontraída.


MN –
Sim, sim, sim, sim.


JV – E o teu avô?


MN –
Sim, cantava fados e cantava fados à desgarrada. Com tempo e no lugar certo, acho que esse encontro com a música vai acontecer de outra forma, talvez ou não.


JV – Isto não tem que ser uma coisa pública. Mas é uma área que acaba por ser uma ferramenta importante para ti, que tu gostavas de desenvolver. De ti para contigo. E pronto, ficamos por aqui.


MN –
Sim, sim.


JV – Mike, bom jantar, até breve.


MN –
Até já. Bom descanso.

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Moda

Miguel Nunes
ERNEST W. BAKER

Depois de uma segunda coleção, a Ernest W. Baker foi indicada para o prémio LVMH edição 2018 - e só isso diz muito sobre a marca criada pelos designers Reid Baker, de Detroit, e Inês Amorim, de Viana do Castelo. O nome é do avô do americano e as peças podia ter sido repescadas do seu roupeiro, caso ser publicitário continuasse a ser tão cool quanto naquela era.

Li numa entrevista vossa recente que os últimos tempos de incerteza mundial serviram também para examinar o que interessa para a marca e aquilo que têm a dizer. A que conclusão chegaram?

Desde que começamos, a Ernest W. Baker foi construída em volta da ideia de família, e a pensar nas pessoas que caminham ao nosso lado nesta jornada. Com a pandemia, este foco para a marca tornou-se ainda mais relevante. A nossa marca, é uma representação completa de quem trabalha do nosso lado e aquilo que acreditamos - em criar um universo e uma identidade autêntica.

A Ernest W. Baker parece assentar num jogo de contrastes onde o clássico conhece o atual, os ícones americanos flirtam com a sofisticação europeia, elementos casuais surgem na mesma sintonia de uma elegância intemporal. Como definem a vossa estética? E como encontram o equilíbrio entre estes contrapontos?

A nossa estética define-se no equilíbrio entre esses dois contrastes. Construímos uma estética em que estes dois elementos estão interligados e ao mesmo tempo equilibram-se. Usamos também a rosa, como um símbolo muito importante para nós. O forte duopólio do vermelho e preto, combinado com o trio do bege, castanho e camel. Cores que nos encaixam e que incorporamos em todas as coleções. Os cortes clássicos e intemporais estão presentes também na nossa identidade - com detalhes em cortes, materiais e formas.

Uma das peças em destaque nesta edição da SOLO são os vossos fatos, em particular aqueles que reúnem elementos ‘fora da caixa’ como as calças à boca de sino. Qual a anatomia de um fato perfeito para vocês? Como se abre espaço para se modernizar uma das peças mais clássicas de todo o portfólio de moda?

Nunca crescemos a usar fatos e isso dá-nos outra perspetiva para anatomia de fato e permite-nos ter novas ideias e perspetivas para ter uma relação mais fluida com a sua construção. Gostamos de trabalhar de perto com a alfaiataria e aprender e reinterpretar as suas tradições e elementos únicos do passado. Inspirando assim o presente e traduzi-los para o nosso futuro.

︎ ERNEST W. BAKER website

Miguel Nunes

ERNEST W. BAKER AUTUMN/WINTER 2022
Photographer: Vladimir Kaminetsky

Lugar

Miguel Nunes
Molhes do Douro

As fúrias das águas vs. a mão humana - um dos marcos do Douro serviu de palco a céu aberto ao talento descontrolado de Miguel Nunes. Carlos Prata, arquiteto responsável pelo projeto que ganhou primeiro lugar em concurso internacional, fala-nos sobre a obra que terminou em 2009 e deixou marcas até hoje.

As fúrias das águas vs. a mão humana - um dos marcos do Douro serviu de palco a céu aberto ao talento descontrolado de Miguel Nunes. Carlos Prata, arquiteto responsável pelo projeto que ganhou primeiro lugar em concurso internacional, fala-nos sobre a obra que terminou em 2009 e deixou marcas até hoje.

Nasceu no Porto, onde sempre viveu. De que forma se sente ao poder interferir e melhorar com um lugar tão familiar para si?

Nunca imaginei que pudesse deixar tantas marcas no território da minha cidade. Só passado muito tempo é que adquiri essa consciência. Trabalhei, como sempre, com afinco - eu, em casos mais recentes com a minha filha Catarina e sempre com as equipas que me acompanharam em diferentes tempos - para fazer o que melhor sabíamos, aproveitando o que as circunstâncias nos podiam oferecer e possibilitar. E hoje, quando percorro a cidade, não deixo de pensar que cumpri a minha função social com estas obras, respeitando os múltiplos locais onde construí espaços agradáveis para usufruir e formas não dissonantes com o contexto, sem serem miméticas.

Em relação ao projeto dos Molhes do Douro, como surgiu esta oportunidade e quais eram as suas memórias pessoais desta localização?

O projeto dos Molhes do Douro foi desenvolvido no âmbito de um concurso conceção/construção, para um cliente particular: dois empreiteiros - Somague e Irmãos Cavaco. Houve um tempo, em que assim se construíam as grandes obras públicas. A responsabilidade de intervir com “prótese” de tamanha dimensão, num local tão sensível que conhecia desde sempre, foi o maior desafio que enfrentei. Dominar o mar, era disso que se tratava, só podia ser feito com massa, o que se mede em toneladas. Compatibilizar a Sul, essa massa, com a paisagem natural e a Norte, com a oportunidade de dar continuidade à cidade, mar adentro, foi uma tarefa nada fácil. Hoje, o sítio transformado, já foi apropriado pela vida da cidade, e o respeito pelo velho molhe de Felgueiras e pelas cotas do Passeio Alegre, não clamam por memórias da história do local, como acontece em muitas intervenções dissonantes noutros pontos da cidade. É com enorme felicidade, por isso, que me revejo nesta obra.    

Qual foi o grande objetivo do projeto e de que maneira o incorporou no seu trabalho?

Cumprimos o que se esperava objetivamente desta obra - navegabilidade com segurança da barra do Douro e proteção das suas margens da fúria das águas. Assuntos de que já ninguém fala, o que é um bom sinal. E depois, que a obra respeitasse o local, assunto bem mais difícil. Por isso conceções tão diferentes. A Sul um quebra-mar destacado - uma ilha solta do areal do Cabedelo - o mais baixo possível para que se continuasse a ver desde o Passeio Alegre, sem interferência, a “infinita horizontal”. A Norte, uma construção vertical, com uma sucessão de ressaltos estudados para melhor dissipar a energia das ondas. Como remate superior desta extensa construção, um passeio público que ganha ao mar mais espaço para a cidade, permitindo que seja vista desde ângulos antes apenas reservados aos homens dos barcos. Um passeio público delimitado por bancos contínuos de ambos os lados - com zonas para sentar e outras para deitar, viradas a Sul - e com acontecimentos que se constituem em referências no longo percurso linear. Um deles, a que chamamos "o mar enrola no molhe” serve de aviso aos mais incautos pela altura da coluna de água que provoca, que a maré está subir e que não é aconselhável progredir no passeio.

Para além do corredor, foram pensados também um restaurante e uma galeria interior. De que forma este projeto veio melhorar a vida urbana?

Um molhe muito baixo para garantir a continuidade urbana é uma construção que o mar vai galgar sistematicamente, fazendo-o desaparecer em tempos de maior intempérie. Sendo necessário poder aceder ao farol sem restrições, construiu-se a ideia de uma galeria coberta ao longo de toda a extensão do molhe, para aí aceder. Essa necessidade possibilitou pensar-se a galeria como um espaço também lúdico, a que chamamos “a viagem ao centro da tempestade” que permitia, em segurança, aceder ao farol, sentindo as sensações de estar em mar alto no meio da tempestade. No enraizamento do molhe, também houve a oportunidade de criar um espaço para a instalação de um restaurante, sob o molhe, virado a sul. Infelizmente, estes equipamentos de que a cidade podia usufruir, precisavam de intervenções de proteção no inverno, principalmente quando se conjuga o rio com maior caudal com o mar picado, com onda de sudoeste, que não deixa o rio desagua, tendo como consequência a subida do nível da água. A falta de conservação, pelo desinteresse de quem é responsável pela gestão do molhe, levaram à completa degradação destes espaços, tendo sido encerrados e emparedados.

O que ainda falta melhorar no Porto? Qual seria um projeto que gostaria de um dia ainda vir a abraçar?

A cidade do Porto ocupa um território muito reduzido, mas é um centro de uma área metropolitana muito dinâmica. Tenho defendido que ao Porto falta densidade. Não conheço nenhuma cidade no mundo, com peso específico relevante, que não seja densa, concentrando uma massa crítica expressiva. Timidamente a atual administração camarária - que foi o que de melhor aconteceu na nossa cidade - elaborou um PDM onde essa maior concentração já se poderá verificar em alguns locais estratégicos. Mas penso que ainda será preciso bastante mais. Espero um dia poder vir a ver concretizados muitos dos projetos que desenvolvi para a cidade, como por exemplo, no tempo da presidência de Fernando Gomes, a instalação de tapetes rolantes na Rua 31 de Janeiro, para dinamizar o comércio desta zona ou, já com esta administração, a proposta de reorganização do espaço urbano entre a Praça do Império e a Avenida da Boavista em concurso público a que não foi dada sequência. Mas como sempre estou disponível para tratar outros temas, que poderão estender-se desde a escala urbana - como seja a reabilitação do território que a chegada do nova ponte do metro vai desequilibrar  (não queremos uma nova avenida da ponte, ainda hoje não resolvida) - ao redesenho de um espaço urbano, destinado ao usufruto das pessoas, por menor que seja a intervenção.

Arquitectura: Carlos Prata
Fotografia: Diogo Oliveira

Miguel Nunes
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Para além do corredor, foram pensados também um restaurante e uma galeria interior. De que forma este projeto veio melhorar a vida urbana?

Um molhe muito baixo para garantir a continuidade urbana é uma construção que o mar vai galgar sistematicamente, fazendo-o desaparecer em tempos de maior intempérie. Sendo necessário poder aceder ao farol sem restrições, construiu-se a ideia de uma galeria coberta ao longo de toda a extensão do molhe, para aí aceder. Essa necessidade possibilitou pensar-se a galeria como um espaço também lúdico, a que chamamos “a viagem ao centro da tempestade” que permitia, em segurança, aceder ao farol, sentindo as sensações de estar em mar alto no meio da tempestade. No enraizamento do molhe, também houve a oportunidade de criar um espaço para a instalação de um restaurante, sob o molhe, virado a sul. Infelizmente, estes equipamentos de que a cidade podia usufruir, precisavam de intervenções de proteção no inverno, principalmente quando se conjuga o rio com maior caudal com o mar picado, com onda de sudoeste, que não deixa o rio desagua, tendo como consequência a subida do nível da água. A falta de conservação, pelo desinteresse de quem é responsável pela gestão do molhe, levaram à completa degradação destes espaços, tendo sido encerrados e emparedados.

O que ainda falta melhorar no Porto? Qual seria um projeto que gostaria de um dia ainda vir a abraçar?

A cidade do Porto ocupa um território muito reduzido, mas é um centro de uma área metropolitana muito dinâmica. Tenho defendido que ao Porto falta densidade. Não conheço nenhuma cidade no mundo, com peso específico relevante, que não seja densa, concentrando uma massa crítica expressiva. Timidamente a atual administração camarária - que foi o que de melhor aconteceu na nossa cidade - elaborou um PDM onde essa maior concentração já se poderá verificar em alguns locais estratégicos. Mas penso que ainda será preciso bastante mais. Espero um dia poder vir a ver concretizados muitos dos projetos que desenvolvi para a cidade, como por exemplo, no tempo da presidência de Fernando Gomes, a instalação de tapetes rolantes na Rua 31 de Janeiro, para dinamizar o comércio desta zona ou, já com esta administração, a proposta de reorganização do espaço urbano entre a Praça do Império e a Avenida da Boavista em concurso público a que não foi dada sequência. Mas como sempre estou disponível para tratar outros temas, que poderão estender-se desde a escala urbana - como seja a reabilitação do território que a chegada do nova ponte do metro vai desequilibrar  (não queremos uma nova avenida da ponte, ainda hoje não resolvida) - ao redesenho de um espaço urbano, destinado ao usufruto das pessoas, por menor que seja a intervenção.

Molhes 2
Molhes 3
Molhes 4

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